Lonely Tonight

*TRILHA SONORA AO FIM DO TEXTO.

Aquele era o quarto de hóspedes no qual desde menina acostumara-se a passar parte das férias de verão. A vista para o jardim vistoso, o vislumbre do campo que se estendia até bem longe, as noites estreladas, o despertar com o canto do galo e cantar dos passarinhos pousados no parapeito da janela e grades da varanda. Aquela era a fazenda cujos campos percorrera correndo quando criança apesar de sua melhor amiga jamais acompanhá-la por sempre ter preferido as comodidades e a limpeza da casa grande. Aquela era a fazenda cujos campos percorrera correndo quando criança acompanhada pelo irmão mais velho da amiga. Como ele conhecia bem os campos, os bosques; como ele se preocupava em não perdê-la de vista. Claro. Ela tinha doze anos; ele, dezenove.

À varanda com uma xícara de chá ainda bem quente em mãos, Paula olhou para as estrelas e suspirou. Sete anos os separavam como o separavam da própria irmã. Uma eternidade quando se é uma garota de quinze anos. Um abismo, considerando que ele já estava casado e a esposa dele esperava a primeira filha do casal. Mas, para Paula, sonhar com ele era inevitável… Ele era tão bonito, tão inteligente, tão forte, tão responsável, tão cheio de vida… Tão inalcançável, tão proibido! Que tortura foi para ela ser dama do casamento dele junto da irmã dele! Mas ela era só uma garota… Uma tola garota apaixonada pelo viril irmão mais velho da melhor amiga, como tantas outras tolas garotas da idade que tinha à época.

Passou. Os anos passaram e o amor platônico desvaneceu; a admiração e afeição, contudo, mantiveram-se inalterados. Ele seguiu como marido e pai; ela, conheceu amores, casou-se, teve uma filha, divorciou-se. Por quase três décadas, foi muito próxima dele, mas sem que jamais lhe viessem à tona outra vez aqueles sentimentos da adolescência. Ele era um bom amigo, era o irmão de sua melhor amiga; o homem que sempre a procurava e sempre era procurado por ela quando um ou outro ou ambos sentiam a necessidade de conversar sobre a reclusão à qual se condenara a irmã dele desde a morte do noivo.

Mas então ele se divorciou. Pelos motivos corretos, no momento errado talvez. Em mais de 25 anos de união, Beatriz nunca fora digna dele de todo jeito; Teresa, contudo, não parecia disposta a abrir mão da relação que construíra com seu marido em nome de reviver o velho amor que o outro parecia ávido por retomar. Então a rejeição parecia mergulhá-lo em solidão e tristeza; uma solidão e uma tristeza diferente daquela a qual ele se habituara ao longo do casamento com a sempre distante porém possessiva Beatriz. E ali estava Paula, sempre que ele precisava de um ombro amigo, sempre disposta a um almoço, sempre disposta a escutá-lo, orientá-lo. Não que ele não procurasse a irmã, mas ele evitava, embora ela também fosse excelente ouvinte e conselheira. Ela tivera os próprios tormentos, ele não queria expor os deles a ela justamente quando ela enfim voltava a ter motivos para sorrir.

Sem aviso prévio, sem pedir permissão, os sentimentos platônicos arrebataram-na. Por quê?, perguntava-se toda vez que se notava perdida naqueles olhos claros e calorosos. Por quê?, perguntava-se olhando para as estrelas naquela noite na fazenda. Ele já não era inalcançável, ele já não era proibido. Sete anos já não significavam nada agora que ela passava dos quarenta e ele estava próximo dos cinquenta.

Em meio à noite silenciosa e à confusão de sentimentos, Paula escutou passos no corredor. Instintivamente, caminhou de volta para o interior do quarto, calçou os chinelos e, sobre a curta camisola em seda azul petróleo, vestiu o robe que com esta fazia conjunto. Abriu a porta; não havia ninguém, nenhuma luz, nenhum barulho. Percorreu o corredor, desceu as escadas principais, atravessou o salão e seguiu até a varanda dos fundos. Ela não estava sozinha.

– Você também não consegue dormir? – ele perguntou, sua voz grave fazendo disparar o coração dela.

– Não… É difícil pegar no sono quando está tão longe apesar de tão perto…

– Não te entendo, Paula… – murmurou confuso.

– Não temos porque estarmos sozinhos… Não esta noite…

Ele a encarou algo assustado.

– Talvez não devamos, mas o que importa? – indagou Paula, entre nervosos risos e trêmulas palavras. – Somos adultos, livres e podemos nos levantar bem antes que qualquer um aqui se dê conta…

– Paula, eu…

– Eu sei que você não esperava por isso, mas eu já não podia guardar isso só para mim… Espero que isso não arruíne nossa amizade…

No exato instante em que ela voltou as costas para ele, ele tornou a chamá-la.

– O quê?

Os segundos que ele levou para respondê-la pareceram uma eternidade. Em silêncio, ele se aproximou; ela apenas o encarava com certo nervoso. Seus olhos ficaram mais próximos do que jamais haviam estado e em seus rostos podiam sentir a pesada e apreensiva respiração do outro. Como quem se deparava com uma urgência, ele a beijou. Ávido, passional, intenso. E ela correspondeu plena, veemente, extasiada. E tão inesperadamente como começou a situação, a situação progrediu. Ele a tomou nos braços e, aos beijos, conduziu-a para o interior da casa outra vez, subiram as escadas e adentraram o quarto dela. Trancaram a porta e o que a princípio era intangível, proibido, distante e impossível, viu-se transformar em chama forte e vicejante, viu-se consumar. Aquela noite eles já não estariam sós e o amor outrora inocente e platônico que Paula por ele sentira mostrou-se arrebatador para ambos.

Thaís Gualberto

Essa é minha crônica de Valentine’s Day desse ano e, para quem quiser conferir o conto que escrevi ano passado para ocasião, eis “Enchanted”.

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