Reflexo

Reflexo

Tantos anos se privando, tantos anos se ocultando. Onde estava a jovem espirituosa e cheia de planos? Onde ficara seu ímpeto por opinar e construir o próprio caminho? Quatro décadas sendo quem não era, quatro décadas negando a si mesma? Família… Isso era o que sempre mais lhe importara e a isso sempre se manteve fiel… Mas o que fizera para merecer tamanho fardo?

Quarenta e cinco anos que abdicara a si própria em nome de sua família e Alice já não se reconhecia diante o espelho. Não pelo inevitável peso da idade, mas por ter de sempre atuar mesmo diante aqueles que tanto amava. A irmã dócil, retraída, calada e sem opinião. Uma mera sombra. Na verdade, pior que isso. Uma mulher sem personalidade, sem vida própria. Cúmplice de eventos que considerava vis; testemunha de mentiras que por si só jamais endossaria.

É uma questão de sobrevivência…, repetia em pensamento incessantemente. E não se arrependia, pois lá estava seu único sobrinho em primeiro grau, junto dela, junto dos próprios filhos. Cumprira a promessa que fizera à irmã mais velha em seu leito de morte e sentia-se realizada por isso. Mas o preço fora alto. Tivera de abdicar ao amor de sua vida, à construção da própria família. E o peso dos anos apenas fazia cada vez mais difícil o fardo. Se já não se convencia a si própria, como convencer aqueles ao seu redor? Não podia, contudo, permitir que Amalia deixasse de enxergá-la como aliada. De jeito nenhum! Custasse o que custasse, era seu dever ser digna da confiança de sua engenhosa irmã mais nova. Em nome da família, em nome da promessa que fizera a Angélica.

Fingir não era viver, Alice bem sabia e por isso sofria. Mas ainda era necessário. Ali, diante o espelho, por mais uma manhã, respirou fundo e secou as lágrimas que inevitavelmente lhe inundavam os olhos diariamente ao pensar sobre tudo, fazendo uma prece para que não demorasse a chegar o dia em que finalmente se veria liberta para ser a verdadeira Alice. Aquele dia em que, por fim, já não precisasse reprimir seus sentimentos ou temer. Maquiou-se, penteou o cabelo e, em um coque francês arrumou-o, com a rapidez e a habilidade de quem já estava habituada ao penteado. Calçou os scarpins marfins de salto grosso e bico arredondado e levantou-se. Olhou-se outra vez no espelho. Olhando-se nos próprios olhos via a Alice de sempre, mas não a Alice de fato. Não sorriu, suspirou. Ainda tinha fé, uma inabalável fé de que um dia, não demoraria, seu reflexo mostraria quem ela realmente era e não quem fingia ser.

Naquele dia, naquele café da manhã para o qual desceria em instantes, contudo, continuaria a atuar.

Esse texto é baseado em Alice Arriaga, personagem de Centelha. Mais escritos sobre Centelha podem ser encontrados pelo site em http://thaisgualberto.com.br/category/meus-escritos/centelha/ . Trilha sonora do texto disponível na playlist abaixo.

 

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