Resenha: “A Canção de Bernadette”

A Canção de Bernadette

Essa é uma história sobre milagres. Milagres verídicos, mais precisamente, já que “A Canção de Bernadette”, de Franz Werfel, narra a vida da hoje Santa Bernadette a partir da primeira de suas visões miraculosas em uma gruta em Lourdes, na França. O que havia nessas visões? Bem, segundo a Igreja, que investigou o ocorrido, a própria Virgem Maria.

Era 11 de fevereiro de 1858 quando, junto com a irmã e uma colega de turma, a menina Bernadette Soubirous, então com 14 anos, foi à gruta de Massabielle apanhar lenha para aquecer o pequeno cômodo em que sua família vivia em um cortiço. Bernardette era uma menina muito doente, pouco dada aos estudos e com precária compreensão do Catecismo. Ainda assim, naquela ida à gruta, vislumbrou o sobrenatural e entrou em êxtase: uma belíssima dama, a quem lá encontrou algumas vezes mais, mas não ousava dizer quem era além de “A Dama”.

O fenômeno atraiu todo tipo de reação. Seus pais enfureceram-se, colegas zombaram, fiés abraçaram a devoção e autoridades, tanto civis como eclesiásticas, exasperaram-se. É interessante notar como especialmente as autoridades civis, tomadas umas por ideiais liberais e outras por ideiais socialistas, opuseram-se empedernidamente à população quando esta começou a seguir Bernardette rumo à gruta. Para eles, era inadmissível que, em um tempo em que “brilhavam” as luzes da ciência, ainda houvesse quem acreditasse em milagres e vivesse sua fé vividamente. Não faltaram maquinações do estado para proibir o povo de se aproximar de sua fé – como cercas, toques de recolher, proibições via decreto – e qualquer semelhança com eventos ocorridos em um passado muitíssimo próximo não é uma mera coincidência.

O clero, por sua vez, representado principalmente pelo padre Peyramale, manteve-se distante do fato e mesmo cético até que os primeiros milagres inconstestáveis, como a chama da vela que não queimou a mão de Bernadette durante o êxtase desta e a cura do menino Bouhouhorts, aconteceram. O cura Peyramale, contudo, acaba por não só dar crédito às visões de Bernadette, como a proteger a menina das maquinações estatais, que não poupariam os ardis para fazê-la passar por louca ou mau-caráter.

A história de como esse livro veio à luz não é menos surpreendente que os fatos nele narrados. Franz Werfel, seu autor, um renomado escritor austríaco, tinha origem judaica e, vendo-se ameaçado pela perseguição nazista, refugiou-se, junto com sua esposa, em Lourdes, na França, acolhido justamente por uma família católica. Ouvindo ali as histórias sobre as aparições de Nossa Senhora naquele lugar, Werfel prometeu que divulgaria a história de Bernadette para o mundo. Em cinco semanas, conseguiu fugir para os EUA, onde, em 1941, cumpriu a promessa e publicou o livro.

Não pense, contudo, que “A Canção de Bernadette” é a típica biografia de um santo, com leitura pesadas, vocabulário rebuscado e tom exaltado. O livro foi escrito como um romance e com isso conquista-nos, enacanta-nos e prende-nos da primeira à última página, indo da adolescência à prematura morte de Bernadette, por volta dos 35 anos. As personagens são vívidas, provocando afeição ou repulsa conforme suas atitudes, quase sempre bem documentadas por um panorama psicológico que nos permite entender porque cada um deles raciocina e reage de determinada maneira.

Nesse sentido, destacam-se as caracterizações dos temperamentos das personagens. A protagonista Bernardette, uma fleumática típica, de reações lentas e aparência de indiferença, de tanto faz, mas que nunca faltava com a sinceridade sobre as coisas que vira e ouvira da Dama. O vigário de Lourdes, o padre Peyramale, um típico colérico encasquetado, inquieto, enérgico e de presença marcante. A Irmã Vauzous, uma melancólica irredutível e de expressão pesada, uma mostra do pior lado do temperamento.

Grande parte do brilho do livro está na maneira como todos esses confrontos são-nos apresentados e fazem-nos refletir sobre o contexto, as atitudes das personagens e até mesmo sobre como nós reagiríamos testemunhando algo da magnitude do que se deu na gruta de Lourdes. Eu poderia certamente dizer bem mais sobre esse livro, mas é impossível fazê-lo sem que eu tenha de deter-me às minúcias que o fazem tão rico.

Leiam-no e tenho certeza de que, ainda que não sejam católicos, terão grande proveito desta leitura. 10/10.

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