A comemoração se antecipava ao fato. 22 de agosto, mas seria apenas no dia 24 que ele enfim chegaria à vigésima primavera. Ou seria inverno, considerando que a primavera só começa em setembro? Whatever! Um liberal gaúcho que faz aniversário no aniversário de morte do estatista gaúcho Getúlio Vargas; oh ironia! E lá estava eu, a única mulher presente entre os homens e garotos à mesa na pizzaria. Parecia mais uma reunião do LibCon, nosso querido grupo de Liberais e Conservadores de nossa cidade e adjacências e política de fato era o assunto mais popular. Contundentes críticas ao governo e à esquerda em geral, Foro de São Paulo, imitações de políticos das mais distintas linhas ideológicas, doutrinação, comentários sobre podcasts e livros de viés liberal-conservador, teorias da conspiração. Algo sobre os trabalhos de cada um dos presentes, inteligência artificial, filosofia e metafísica, armas, bebidas, excelentes piadas sobre Dolly e Corote. Pessoas de diferentes idades e de diferentes profissões unidas pela política e, claro, pelo aniversário de nosso dileto amigo.
Eis que surge o Nine Fingers na tela das televisões do recinto. Mais uma daquelas revoltantes propagandas do partidão financiadas pelo nosso dinheiro com o crápula-mor da nação posando de vítima… Uma vaia. Em nossa mesa, é claro. E logo a vaia solitária transformou-se em um forte coro de toda a mesa e alguns mais em outras contra o ex-mandatário mais canalha de todos os tempos.
_ Um senhor passou na outra ponta da mesa reclamando da nossa vaia… – contaram-me e eu ri.
_ Não basta ser petista, tem de ser descompensado a ponto de encarar uma vaia a Lula como ofensa pessoal… – eu murmurei, virando os olhos debochadamente. – Vitimistas…
Do nada, escuto uma voz masculina levantando-se contra meus amigos na ponta oposta da mesa.
_ Vocês são moleques! – resmungava o senhor, de volta do banheiro, com um dedo em riste. – Pensam que assim vão mudar alguma coisa? Bando de riquinho mimado!
Todos assistíamos com espanto. Como podia um senhor nos atacar tão virulentamente sem que o houvéssemos provocado? Afinal, quem vaiamos foi um político que aparecia na TV, não o tal senhor. Então um de nós, frente a mim e longe do dito cidadão, pôs-se de pé.
_ O senhor é petista?
_ NÃO! – gritou o senhor.
_ O senhor é amigo de Lula?
_ NÃO! – gritou outra vez, parecendo ainda mais raivoso. – Mas eu sei o que é lutar! Eu enfrentei militar!
_ Enfrentou nada! Se tivesse enfrentado de verdade estava morto! Eu fui comunista! Conheço bem essa cambada! Eu gritei Lula-lá na Cinelândia em 89, eu chorei quando ele perdeu! Mas eu não demorei a perceber que eles eram um lixo…
_ Eu ‘tô falando! Não vai me deixar falar?
_ Pode falar, senhor… Mas vai ter que me escutar… Eu fui comunista também!
A expressão do senhor era de puro ódio. Ainda gritando, retornou para o lugar dele e de lá seguiu vociferando impropérios para nossa mesa.
_ Vocês são tudo moleque! Eu fui torturado!
_ Por quem?
_ Pelo DOI-CODI!
_ Mentira! Eu já fui do PCB! Tudo mentira! Se tivesse “lutado” mesmo estava morto!
_ Você me respeita que eu tenho 70 anos! Você não vão conseguir nada se reunindo e batendo panela e tomando cerveja! Eu lutei por democracia…
_ Democracia, democracia… Vocês queriam outra ditadura, isso sim!
O senhor fez menção de voltar a se levantar e o aniversariante em um ímpeto levantou-se e dirigiu-se à mesa do senhor.
_ Meu senhor, por favor, deixa a gente em paz… A gente não quis te provocar, só queremos comemorar meu aniversário em paz, por favor…
O aniversariante retornou a nossa mesa e o senhor na mesma hora levantou-se.
_ Você sim é homem! Parabéns! Admiro sua postura, cara!
Não basta ser comuna, o cara está bêbado…, eu pensei, levando uma das mãos à testa e com um meio sorriso irônico diante o comportamento totalmente non-sense do tiozão comuna capslock.
_ Valeu, valeu… – agradeceu meu amigo.
Retornando para sua mesa, o senhor revolts não se conteve e continuou a importunar-nos.
_ Você eu não respeito não! Porque você é moleque, porque não respeita que eu tenho mais de 70! – gritou para o amigo sentado a minha frente, o mesmo que havia exposto o embuste inicial do senhor.
_ Como não respeito o senhor se foi você quem começou a provocação?! – perguntou meu amigo, pondo-se de pé.
Tudo aconteceu muito rápido. Os dois estavam no meio da pizzaria. Garçons e o gerente colocaram-se entre eles e tentaram conter o senhor da mesma maneira que meu amigo foi segurado por dois ou três de nossos amigos enquanto um quarto tentava explicar ao gerente o que havia acontecido. As vozes, no entanto, confundiam-se e a única coisa evidente é que o senhor estava disposto ao confronto físico, dadas as veias saltadas e o suor que brilhava em seu rosto apesar de estarmos em um ambiente fresco. Eu começava a me sentir assustada.
_ No meu tempo, no meu tempo isso se resolvia de outra maneira!
_ Na minha também!
_ No meu tempo existia macho de verdade, que não foge da briga!
_ Você quer resolver lá fora, então vamos!
_ Eu tenho mais de 70 anos!
_ Se você fosse homem mesmo não ia ficar dizendo o tempo todo que tem 70 anos, ia brigar sem pensar nisso, vitimista!
Então, para o meu alívio, meu amigo recuou e tornou a se sentar em nossa mesa. O senhor, entretanto, insistiu.
_ Eu vivi para isso pelo menos! Você pode não chegar a tanto, nunca se sabe o que se pode encontrar no caminho lá fora… – insinuou.
_ O senhor está me ameaçando? Ei, vocês ouviram?? Ele está me ameaçando! Isso é uma ameaça!
_ Que velho cretino… – eu murmurei, ao que meus amigos balançaram a cabeça em assentimento. – Tem de ser muito vitimista para armar toda uma cena porque não gostou de que vaiamos o ídolo dele…
_ Esses caras são covardes… Atacam pelas costas… Eu fui um deles e saí disso quando me dei conta da sujeira e do embuste que esse pessoal faz e é… Por isso eu o interpelei… Muita covardia ele abordar os garotos com toda aquela pose de superioridade… Ele ficou todo nervoso porque não esperava encontrar em nosso grupo alguém que já tenha vivido nesse meio, alguém que conhece as artimanhas e mentiras que eles sempre usam… Ele não esperava por isso… – explanou nosso amigo. – Ele veio nos provocar justamente para ser agredido fisicamente e assim posar de vítima e denegrir o movimento liberal, rotulando-nos como um bando de intolerantes que bate em idosos só por serem de esquerda… O que nem de longe é verdade… Podem ter certeza de uma coisa: quanto mais se complicar a situação do governo, mais essa gente vai tentar puxar brigas com opositores só para denegrir o movimento… Essa gente é muito covarde… Eu te devo um vinho pela confusão! – ele disse ao aniversariante.
_ E eu devo um processo por danos morais nesse velho pelo escândalo que ele fez! – falou o aniversariante.
_ Aí estará você sendo o vitimista… – eu comentei, rindo. – Mas considero correto processar… Agora convenhamos, a esposa dele é uma frouxa… Nem para tentar conter o marido estressadinho serve… Minha mãe jamais deixaria meu pai dar um show desses…
Muito tempo passou, os ânimos se estabilizaram. Vez ou outra, víamos o senhor olhando em nossa direção entre um gole de vinho. Para nossa surpresa (mas nem tanto), ele foi incapaz de ignorar nossa mesa ao passar por ela outra vez no caminho para o banheiro. Sem muita cerimônia, atirou um um guardanapo dobrado diante meu amigo com quem ele se havia estranhado. “Enquanto a gente discute aqui, eles enchem os bolsos de dinheiro. Babacas somos nós”. E eu ri, pois babaca era ele, que começou o circo. Eis que a esposa frouxa veio até nós e fez um envergonhado pedido de desculpas, do que eu também ri depois que ela se afastou. E ao voltar do banheiro, o senhor foi cumprimentar meu amigo com quem antes discutira. Trocaram algumas palavras, disseram-se seus nomes, apertaram as mãos e se abraçaram amigavelmente. Meu amigo se sentou, o senhor seguiu seu caminho.
_ O que vocês conversaram? – eu quis saber.
_ Eu quebrei ele… Eu disse que fui traído pelo movimento comunista, mas que me dei conta lá atrás, e então ele disse que também foi traído…
Thaís Gualberto
*baseado em fatos verídicos.
0
Economista & Escritora. Apaixonada por ficção, música, política e coisas fofas. Aqui vocês terão resenhas e, principalmente, textos ficcionais escritos por esta que vos “fala”.
Ge-ni-al
Obrigada, Fabrício!
uhauahauh. . foda demais Thais. .. Acho que foi bom eu não ter ido… Não sei como eu reagiria ali…
Obrigada, Flavio! E graças a Deus ninguém fez nenhuma bobagem! hahaha
ameiiiii esse post gente!!
me segue eu te sigo de volta!