Mais um fim de tarde de inverno. O dia fora límpido, ensolarado apesar da gélida brisa que se abatia sobre os campos; as primeiras estrelas logo brilhariam no firmamento. Por sobre o espesso casaco preto de lã, Ilana cruzou os braços aproximando-os o máximo possível do corpo. Apesar da blusa de lã que usava sob o casaco, da saia pesada, das meias grossas e das botas de couro, sentia frio.
Sentia frio, mas ainda assim apreciava a sensação. A sensação de paz e liberdade que lhe conferia estar além do bosque, no ponto mais alto de La Hermosa, no limite com Montes Claros, com o céu em vários tons de azul acima e as pastagens inclusive de outras propriedades e parte da cidade abaixo. Aquela era a vista que buscava diariamente, e mais de uma vez em um dia se atormentada, sem jamais se cansar. Suspirou e, ao expirar, acompanhou com o olhar o ar quente expelido condensar-se em contato com o ar frio.
Olhou para trás. Aimeé estava seguramente amarrada a uma firme árvore, pastando tranquilamente o capim que crescia desordenadamente ao redor da árvore. Ilana respirou fundo. Tudo tem sido tão estranho, tão diferente… Como posso ver tudo igual mas, ao mesmo tempo, tão mudado ao meu redor? O ar parece ter outra densidade, as pessoas parecem distintas e mesmo as paisagens parecem ter se modificado além do habitual decorrente da mudança das estações … Eu tenho consciência de que segue tudo igual… Há uma eletricidade, um magnetismo, uma força e eu não entendo… Nada mudou e nada se manteve como sempre… Terei sido eu quem mudou? Ilana olhou a si mesma de baixo a cima, colocou a trança para frente. Não… Eu não mudei… Eu nem ao menos teria porquê mudar… Porque em meu coração nada mudaria…
Uma lágrima. Respirou fundo com o intuito de contê-la, mas era tarde. Era impossível. Com as primeiras estrelas da noite que se anunciava e uma afastada Aimeé como testemunhas, desmoronou. Como se constrangida consigo própria, levou as mãos ao rosto. Não… Eu não posso… Eu não devo… Esses pensamentos não têm o menor sentido… Lágrimas inundaram-lhe o rosto. Sentia-se confusa, mas também extremamente estúpida.
Normalmente ter-se-ia empenhado em conter o próprio pranto, que mesmo sozinha sufocava como quem queria provar a si própria o quão forte era; dessa vez, contudo, nada fez. Apenas permitiu que dor e questionamentos internos a consumissem. Ergueu a cabeça. Ainda aturdida, ainda chorando, mas sem as mãos a lhe cobrir os olhos, que miraram longe nos campos, no centro da pequena Santa María e no azul ligeiramente mais profundo do fim de tarde. A paz que eu tanto apreciava em Santa María… Será que isso se perdeu? Ou se transformou e não consigo compreender?
Subitamente, uma sensação de estar sendo observada dominou-a e, instintivamente, levou a mão direita à arma que levava consigo à altura da cintura. Bobagem…, convenceu a si mesma após alguns segundos de absoluto silêncio. Só estamos eu e Aimee… E mesmo que houvesse alguém mais, decerto não seria uma ameaça… De nenhum tipo… Respirou fundo. Por quê? Por que já não consigo entender a mim mesma?, questionou-se em pensamento, aflita.
E, no instante em que, instigada pelo ruído de passos sobre folhas, virou-se. Virou-se e já nada mais seria igual. Virou-se e, enfim, compreendeu tudo. Aqueles olhos que tanto evitara, aqueles olhos de que tanto fugira, jamais poderia ignorá-los novamente. Estava inevitável e irremediavelmente aprisionada pelo par de receptivos olhos castanhos que a observava. Aqueles olhos que transbordavam compreensão e talvez até mesmo algo mais que era incapaz de decifrar. Aqueles eram os mais sinceros que já vira, aqueles eram os olhos no fundo dos quais mais ela desajava olhar, mesmo sem ter consciência disso. Extasiada, sentia que nem mesmo seria capaz de piscar enquanto estivesse diante aqueles olhos. Mas chorava. Chorava como quem por fim entendia todas as aflições que vinham consumindo-a. Chorava igualmente encantada e assustada.
_ Seus olhos… – murmurou, em um estado quase extasiado de comoção. – Você tem olhos lindos… Luciano… Como pude não notá-los antes?
As palavras saíram-lhe de maneira automática e, tão logo deu-se conta do que dissera, levou as mãos à boca. Tentou articular uma excusa, mas isso seria impossível. Ainda tinha os próprios olhos fixos àqueles olhos castanhos que a contemplavam com tanto carinho e admiração. O sorriso tímido alargou-se e o semblante de Luciano iluminou-se. Era-lhe tão gratificante que aqueles olhos tristes, expressivos e de límpido azul enfim fitassem os olhos dele que, por alguns instantes, permaneceu em silêncio, apenas contemplando o momento.
_ Acredito que você é a única capaz de responder a sua pergunta… Mas fico feliz que enfim possa olhar nos seus olhos, Ilana. Não faz ideia do quanto ansiei por isso…
Emocionada, em meio às lágrimas que lhe vertiam silenciosa e involuntariamente, tudo o que conseguia naquele momento era aprecia-lo, admira-lo, descobrir e registrar cada detalhe de seu semblante, de seu rosto, de seu olhar. Ele parecia ter uma cicatriz na ponta da sobrancelha esquerda, ela notou. Não parecia haver fios brancos em sua barba, tampouco no cabelo. Eram tantas descobertas em tão pouco tempo! Mas eram os olhos profundamente castanhos e atenciosos que mais se destacavam naquele rosto incontestavelmente masculino e de expressão tão tranquila.
_ Desculpe-me… – murmurou Ilana, embora nem ela soubesse ao certo o queria dizer com aquelas palavras. – Eu nunca deveria tê-lo ignorado…
A passos lentos e cuidadosos sobre a relva, Luciano aproximou-se. Sorria com sinceridade, com encantamento.
_ Não posso, nem devo culpá-la ou me chatear por isso… – confessou, aproximando-se dela e sorrindo sinceramente. – Tudo a seu tempo, Ilana… Eu aguardei por esse dia como a nenhum outro em minha vida, mas jamais a pressionaria para antecipá-lo em um segundo sequer…
A compreensão que ele demonstrava não fazia sentido para Ilana.
_ Mesmo agora, eu não sei… Eu não enten…
Delicadamente, Luciano pôs um dedo diante os lábios de Ilana.
_ Não preciso de nenhuma explicação… Só quero te apoiar, admirar… E vê-la sorrir… – confessou, tocando-lhe o rosto.
Ilana sentiu-se estremecer. Um homem. Permitira, depois de tantos anos, que um homem a tocasse. Permitiu-se, depois de tantos anos, ficar olho no olho com um homem. O que aquilo significava para ela? O que aquilo significava para ele? Ainda não conseguia pensar com clareza. Outra vez dominada pelos instintos, abraçou-o. Abraçou-o com a força de quem por muito tempo reprimira o contato tão próximo. Nenhuma palavra, apenas o pranto incontido e a compreensão irrestrita. E assim permaneceram por vários minutos, enquanto o céu tornava-se azul escuro e as estrelas por fim ficavam visíveis.
Para mais crônicas envolvendo esses personagens, leia as crônicas publicadas em Fantasmas de Amor.
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Economista & Escritora. Apaixonada por ficção, música, política e coisas fofas. Aqui vocês terão resenhas e, principalmente, textos ficcionais escritos por esta que vos “fala”.