Que a edição brasileira do reality show musical The Voice é uma piada quando comparada a irretocavelmente produzida edição americana de acordo com a minha opinião não há novidades. Ontem, contudo, na semifinal da terceira temporada, assisti ao segundo episódio mais deplorável da história do programa (o mais deplorável eu comentei em “A arrogância/infantilidade de Lulu Santos” há cerca de um ano).
No programa de ontem, foi atribuída aos jurados a função de dividir 30 pontos entre seus dois semi-finalistas da maneira que estes julgassem a mais apropriada. A pontuação seria somada aos percentuais obtidos pelos candidatos na votação popular. Com frases de efeito no estilo “Nessa fase são todos inegavelmente muito talentosos”, “São dois estilos diferentes, não cabe a mim julgar”, “O mais importante é que seja feita a vontade do público”, “Seria injusto dar pontuações diferentes”, todos os quatro técnicos do programa deram 15 pontos para cada um de seus dois candidatos, de modo que não exerceram qualquer influência sobre o resultado da votação popular, ou seja, mantiveram no zero-a-zero. E isso foi patético e covarde. E, mais que isso, foi uma mostra de algo aparentemente enraizada na mentalidade do brasileiro médio: a negação do mérito.
Antes de prosseguir, esclareço que não emitirei aqui minha opinião sobre qualquer dos candidatos em específico, pois este texto é sobre a postura dos técnicos. Observado isso, é importante que pensemos um pouco sobre coisas simplórias e cotidianas. O brasileiro gosta de posar de isento em absolutamente tudo como se isso fosse um valor moral; foge de expor sua opinião diante seus círculos de convivência como o diabo foge da cruz, sobretudo quando se trata de assumir preferências e de indicar aquilo que considera melhor. Reconhecer alguém como sendo melhor que outro em algo é visto como crime em nossa sociedade excessivamente paternalista e facilmente “magoável”. Ao elogiar um como melhor você expõe que, ao menos para você, o outro é pior e frustrar as expectativas e o ego de alguém é tido como chato, incômodo, malvado e indelicado. Lembro-me dos tempos de ensino médio, quando no segundo ano fui repreendida por ficar feliz ao tirar 10,0 em uma prova de Química muito difícil porque 37 colegas (de uma turma de 42, incluindo a minha pessoa) haviam ficado no vermelho como se eu fosse a responsável pelo fracasso deles e não eles próprios, como se eu devesse me sentir culpada por ter ido tão bem em uma avaliação na qual a maioria da turma fora reprovada.
Assim agiram os técnicos do The Voice Brasil na noite de ontem ao lavar as mãos e jogar para o público função que lhes foi delegada. Obviamente que era um direito deles dispor de maneira igualitária dos pontos, isso, no entanto, foi inegavelmente uma postura acovardada de pessoas que não queriam ficar “mal vistas” pelo fã-clube deste ou daquele candidato, que não queriam ser apontadas como “destruidoras” do sonho dos que não se classificariam, que não queriam ser alvos de críticas como “o técnico salvou o pior/ o melhor foi para casa”. Distribuindo igualmente os pontos, nenhum dos jurados ficaria visto como vilão, mas sim como bondoso. Usando palavras do colunista de Veja e Folha de São Paulo, Reinaldo Azevedo, os técnicos “se refugiaram no conforto da posição nem-nem”. E ao fazer isso, negaram-se a reconhecer aquele que consideravam mais meritório de disputar o prêmio máximo. Só mais um sintoma da mediocracia instaurada, que sempre torna tão difícil e muitas vezes até mesmo embaraçoso reconhecer os méritos de outrem.
A virtude reside no saber posicionar-se, no fazer sua opinião valer, em reconhecer que é melhor em cada coisa independentemente do que possam outros dizerem. Atitudes como as dos quatro técnicos do The Voice Brasil só colaboram para enraizar essa primazia por igualitarismos injustifcados tão propagados e vociferados nas mais distintas esferas; só colaboram para esse posicionamento paternalista dos que não querem assumir responsabilidades tão disseminado nas distintas esferas. Beira o engraçado que um reality show musical possa levar a uma reflexão sobre princípios, mas é exatamente disso que se trata… Reconhecer méritos é importante para todos, para que cresçamos nas derrotas e para nos sentirmos incentivados a melhorarmos cada vez mais nas vitórias.
Sobre o programa em si, por favor, que na próxima edição a produção ou faça com que apenas os técnicos tenham poder na decisão das vagas para a final ou deixem que o público sozinho escolha seus representantes no derradeiro episódio. A estratégia da terceira temporada é um fiasco! Não à toa, o programa original, o The Voice US, com Blake Shelton e Adam Levine, é infinitamente melhor! Mata-mata a partir do top 20 e sem essa palhaçada de necessariamente ir um representante de cada técnico para a final (na última terça-feira, foram 3 finalistas do Adam Levine, 1 do Blake Shelton e nenhum de Gwen Stefani e Pharrel). Isso para não falar dos candidatos do TV US, que em geral demonstram muito mais profissionalismo, mesmo os mais inexperientes (como Jacquie Lee, da 5a temporada)…
As falas dos técnicos podem ser ouvidas aqui, nos diferentes vídeos ao longo da postagem da página oficial do programa sobre a semifinal. O fato incontestável é que esse em-cima-do-murismo para “não ficar mal” com ninguém é uma praga na cultura brasileira, seja no The Voice, seja na vida cotidiana.
PS: Como se não bastasse a postura absurdamente covarde dos jurados, eis que o site oficial do programa inventou a “Porcentagem maior que 100%“:
“Resultado: Romero leva 58% dos votos do público, e Rose 42%. Brown divide os 30 pontos igualmente entre os dois: 15% para cada um. No total, Romero fica com 73% e Rose com 57%.”
Thaís Gualberto
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Economista & Escritora. Apaixonada por ficção, música, política e coisas fofas. Aqui vocês terão resenhas e, principalmente, textos ficcionais escritos por esta que vos “fala”.
Adorei conhecer seu blog e me envolvi e me questionais em diversos momentos. Apesar de não acompanhar de fato o programa tanto nacional quanto o original, me envolvi com todas as questões que levantou, essa imposição do politicamente correto, que é algo que me incomoda muito, essa falsidade do bom moço, da falta de opinião e da cultura de enaltecer o pobre coitado ao invés do merecedor. Parabéns pelo texto. Um blog inteligente em meio a tantas baboseiras que há por ai. Bjs
Rafa do Rafaelando.com
Obrigada, Rafaela! Chegamos a um ponto insuportável do politicamente incorreto e é preciso que critiquemos essa postura acovardada para tentarmos mudar isso… Ainda não tem muito aqui no blog, mas espero logo conseguir escrever com uma frequência razoável e que mais leitores comentem o que escrevo.
Beijos e boas festas!
Thaís