Trilha sonora ao fim do post.
Ah, os bons tempos! Aqueles dias na faculdade de Direito no final dos anos 70… Eu, veterano; você, caloura. Seu longo cabelo negro a se movimentar sinuosamente junto de seus decididos passos pelos corredores. Sempre demasiado séria, porém igualmente encantadora. Os olhos cristalinamente verdes, misteriosos e desafiadores. Claramente, era uma mulher passional, porém firmemente comprometida com seus tão arraigados princípios. Ah, como eu me lembro bem da primeira vez que estivemos de fato frente a frente, no seu primeiro dia como participante do grupo de estudos liberais e conservadores da nossa faculdade! Assertiva, veemente, com uma empostação persuasiva e profundamente convicta. Era como se ela estivesse diante um grande público e não apenas frente a uma dezena de outros estudantes de Direito com ideias similares às dela.
Também pudera, você estudara teatro por toda a vida antes de ingressar na escola de Direito. E, como seria óbvio, era pelo Direito Penal que pulsava seu coração. E que criminalista brilhante eu vislumbrava mesmo sem conhecê-la por mais que algumas conversas! Mas você era mais que isso… Muito mais! Cantava com uma afinação e uma entrega que mesmo entre profissionais da música não costuma ser tão perceptível. Não demorou a que nos aproximássemos; que grande alegria foi descobrir que você estava disponível! O flerte não tardou, tampouco o início de uma relação tão sólida como cada palavra que você proferia no grupo de estudos ou mesmo em debates com grupos que pregavam doutrinas opostas as que defendíamos. Foi tudo tão rápido…! Apenas algumas semanas e veio o noivado; poucos meses, o casamento.
E ainda que fosse intempestiva, você era alegre, ocasionalmente doce e sempre, sempre astuta. Você emanava poder, você emanava autoridade. Mas era também divertida, ousada, estonteante. Tão focada na carreira, tão empenhada em construir um nome como criminalista independente do nome de seu pai. Eu ansiava ser pai; você, porém, ainda não estava preparada para ser mãe. E eu respeitei isso e foi ainda maior a alegria que me dominou quando segurei nosso primogênito pela primeira vez e poucos anos depois a nossa menina.
Então começamos a nos distanciar… Você sempre extremamente dedicada a sua mais complexa cliente, fazendo viagens semanais ao litoral; dedicando tantas madrugadas a leituras repetidas e incessantes sobre esse e outros de seus casos. E você conquistou a reputação profissional que eu sempre soube ser-lhe merecida. E como isso me enchia de orgulho! E, sinceramente, não me importava, pois sua alegria sempre foi a minha alegria e eu me sentia o mais privilegiado dos homens por ter uma mulher como você, a quem eu tanto admiro, a meu lado. E como foi maravilhoso contar com seu apoio quando decidi começar a perseguir de fato o meu mais antigo sonho: tornar-me político e dar continuidade ao legado de políticos liberal-conservadores iniciado décadas antes por avô paterno e fortalecido por meu pai.
Ao mesmo tempo em que você apoiava e incentivava o meu projeto político, notei o brilho em seus olhos esmaecer a cada jantar, a cada reunião. Você considerava as mulheres dos outros políticos vazias, pouco envolvidas com as ideias de seus maridos, e isso te incomodava profundamente, era notável. Mas você também temia a minha ascensão, eu sabia. Temia ter de se afastar da carreira pela qual tanto trabalhara; temia tornar-se primeira-dama… Você sempre foi uma líder nata e não era talhada para o mero suporte. Você não queria perder a independência diante juízes; não queria ter de medir suas palavras em nome de uma campanha política. Na verdade, você nunca suportou a ideia de um dia vir a ser primeira-dama em qualquer nível que fosse. O seu espírito livre e ávido por independência que me fez te amar foi também o que te fez afastar-se de mim.
Como doeu, após quase vinte anos de união, escutá-la dizer que me amava, mas que não podia continuar comigo. Você queria o meu sucesso, você torcia por mim o tanto quanto eu sempre torci por você, mas admitiu-se inadequada aos meus sonhos. E partiu. Vamos superar isso, mas separados; você me disse, com os olhos marejados e avermelhados. O divórcio impôs-se, mas os bons momentos do passado e a afeição mútua fez com que continuássemos parceiros, melhores amigos, confidentes; a admiração que nutrimos um pelo outro só fez crescer.
Hoje você permanece como uma das mais reconhecidas criminalistas do país; hoje minha carreira política aproxima-se do ápice que a carreira de qualquer político pode alcançar. Hoje estou feliz por suas conquistas e também pelas minhas, assim como você jamais escondeu ser recíproco o sentimento. Você era a mulher que eu amava. E talvez ainda o seja. E talvez, ainda que apenas secretamente, o seja para sempre.
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Economista & Escritora. Apaixonada por ficção, música, política e coisas fofas. Aqui vocês terão resenhas e, principalmente, textos ficcionais escritos por esta que vos “fala”.
Gostei muito do seu texto. Muito bonita a história e meio triste o final, hehe.
E adorei a playlist que montou, Gwen <3
Beijo!
Obrigada, Dani! Acho que Cool é minha favorita da carreira solo da Gwen ❤
Não sabia que estava com saudade dos seus textos até ler este. Como sempre, cativante. 🙂
Obrigada, Líley! 🙂 Muito bom vê-la aqui novamente! Beijos!