Setembro de 1979, Nova York. Saias. Vestidos. Meias. Blusas. Sapatos. Casacos. Lã, seda, linho. Cores, padrões florais, quadriculados, listrados, xadrez. Sozinha, pela primeira vez Cristina escolhera roupas para si própria longe dos olhos de sua mãe. Estava em êxtase. Que melhor escape para a péssima primeira semana de aula no curso de Economia em Harvard, a instituição na qual tanto sonhara graduar-se, que abarrotar o armário de novas roupas para o rigoroso inverno que não demoraria a se anunciar? Que melhor maneira haveria para uma garota de 17 anos aborrecida com sua nova vida que tomar um trem rumo à cidade mais cosmopolita do mundo?
Um profundo suspiro e com enorme satisfação e felicidade, Cristina pagou sua compra. Lá estava ela, plena e com um incontrolável e regozijante sentimento de independência, parada no hall da tradicionalíssima Saks Fifht Avenue com as sacolas nos braços e o pueril brilho no olhar dos jovens sonhadores, equilibrada sobre os saltos médios dos scarpins caramelo. Não era sua primeira vez na loja, o sentimento, contudo, era-lhe inédito. Não pela loja, mas consigo mesma. A oposição de mamãe me faz mais forte. Meus malditos colegas me fazem mais forte. Uma nova Cristina nasce aqui… A mulher nasce aqui. E esse é o meu momento e ninguém o irá tirar de mim… Nem mamãe, nem qualquer daqueles imbecis. Serei a melhor e farei com que todos saibam, sintam e jamais se esqueçam disso… Eu serei alguém de quem jamais se esquecerão…
Maravilhada com esse poder interior que da mais difícil semana de sua vida emanara, atravessou a largos passos o hall rumo à saída. Um pouco atrapalhada com as sacolas que decidira carregar ela mesma em vez de deixar que o serviço de entregas levasse todas até o hotel, mas, ainda assim, altiva e distinta. Com os pés enfim outra vez na calçada da 5ª Avenida, naquela tarde de fim de verão, respirou fundo. A saia midi pregueada em linho quadriculado em tons de azul e um tom de salmão em estreitíssimas listras que se cruzavam perpendicularmente esvoaçava levemente; seu cabelo, denso e dourado, que se estendia até a altura dos seios, solto acompanhava-lhe graciosamente os movimentos. Os sentimentos de poder e liberdade permaneciam inabaláveis e, a cada passo, mais concretos.
Uma rápida olhada no relógio em seu pulso esquerdo. Ainda havia tempo suficiente para que fosse à livraria antes de que anoitecesse. Queria poder fazer tudo, mas sabia que em apenas um dia e meio era impossível. A cidade era demasiado grande, havia pessoas dos mais distintos tipos. Pela primeira vez em muito tempo não se sentia deslocada. Esse é o meu mundo… Ainda sou uma estrangeira, mas aqui… Aqui não há motivos para que eu me sinta como uma… Viverei aqui um dia… E terei mais reconhecimento que qualquer outro egresso da geração 79-83… Uma grande, admirada e linda executiva… Um modelo para tantas garotas que se identificarão com os sonhos que sonho e até lá terei concretizado… Inteligente, competente, feminina, linda… Admirada… E realizada…
Estava absorta. As possibilidades que vislumbrava eram grandiosas e orgulhava-se disso. Tinha plena noção da inteligência privilegiada, desde tão cedo estimulada e cultivada, de seu elevadíssimo QI que a tornava uma potente máquina no processamento de informações. Mas tinha também plena noção do quão acima da média também era sua beleza; da clássica feminilidade estampada em seus traços faciais e nos contornos de seu corpo, do quão hipnotizantes podiam ser seus olhos de raro verde azulado, do quão chamativo era seu longo cabelo naturalmente dourado, da delicadeza de seus passos embora tivesse quase 1,80m de altura. Cristina sabia bem que ela representava a quebra de um estereótipo e começava a duramente aprender que isso não abriria facilmente as largas portas que ela imaginava que inteligência e beleza associadas podiam abrir. Além dos muros que delimitavam o Santa Elena, colégio então para garotas em que estudou, ninguém acreditava em sua capacidade. E quando estarrecidos a descobriam, invejavam e tentavam diminui-la. Mas comigo nada disso funciona ou jamais funcionará…
Tudo então aconteceu muito rápido. Um de seus saltos ficou preso em um desnível da calçada e ela só pode sentir a iminente queda, seu corpo rapidamente projetando-se para frente rumo ao chão e à visão de joelhos inevitavelmente ralados que queimariam por quase uma semana antes de a carne ralada dar lugar a uma feia e indesejada casca marrom que ainda levaria alguns dias coçando até por fim descolar-se da pele rosada e renovada. Mas não houve queda. Em vez disso, sentiu-se gentilmente amparada por um corpo quente vestindo camisa de algodão e com um agradável e atraente perfume masculino. Lentamente, mas certamente em um fração de segundos, ergueu a cabeça e, brevissimamente, fitou um par de límpidos olhos azuis.
_ Thank you… – foi tudo que Cristina conseguiu dizer, já de pé e equilibrada, com um agradecido e largo sorriso para o estranho que a salvara de cair.
_ You’re welcome… – rebateu ele, sorrindo amigável.
Exceto pelos olhos e pelo perfume, Cristina mal o notou, mas não conseguia evitar um profundo sentimento de gratidão pela nobre atitude que salvara seus joelhos e mãos. Com mais atenção ao que a rodeava, imediatamente retomou seu caminho. Mas ele não. Ele permaneceu ali, parado de pé no meio da calçada, observando-a se afastar. Estava tomado por uma comoção que até então desconhecia. Ela… Ela é a mulher da minha vida… E ele sabia que respirava ofegante. Não sei seu nome, onde vive, não faço ideia de como reencontrá-la, mas ela é a mulher da minha vida… Mas ela já estava longe demais para que ele a alcançasse e a convidasse para um café, ela já havia desaparecido de seu campo de visão. E, desesperançoso, só restava a ele retomar seu caminho para um rápido lanche antes de tomar um táxi para a estação de trem em que embarcaria no seguinte trem para Boston. E no que restava daquele dia, Cristina não pensou outra vez na quase queda, mas apenas em arrumar as malas com as compras do dia e meio que passou em Nova York e dormir cedo o bastante para pegar o trem das 8h de domingo rumo a Boston para o qual comprara passagem ainda na quinta-feira anterior. Mas ele, em toda a viagem, só conseguia pensar nela. Em como ela era sublime em sua saia xadrez e blusa de seda salmão de mangas compridas para dentro da saia que usava com um cinto no mesmo tom caramenlo dos sapatos, em como pareceram assustados seus olhos claros e indecifráveis, em como era bonita com seu longo cabelo loiro a emoldurar-lhe a face então ruborizada pelo medo, em como parecia pequena e frágil em meio a cidade embora na verdade fosse bastante alta para uma mulher. Ela foi uma miragem…
E na viagem iniciada pela manhã, Cristina dividiu-se entre a leitura e as paisagens da costa nordeste do país que se sucediam no caminho do trem ao longo das mais de quatro horas de viagem. Eu deveria ter trazido minha Polaroid… Ao desembarcar, alguma dificuldade com as muitas malas, dificuldade logo superada com a ajuda de um funcionário da estação que a acompanhou até o táxi que a levaria para o apartamento que ela agora chamava de casa. Amanhã recomeço tudo… Mas recomeço mais feliz e ainda mais certa de que nada nem ninguém conseguirá esmorecer meus sonhos…
_ Desde que você chegou só fala nessa mulher! Você vai se esquecer completamente dela quando eu te apresentar a minha vizinha…
_ Não, não irei… Ela era como um anjo…
_ Minha vizinha também… E ela é inteligente… Começou o primeiro ano de Economia em Harvard, primeira de seu colégio no México a conseguir tal feito… E é a garota mais bonita que já conheci, mas não mexe com meus brios, apesar disso, como a desconhecida com os seus… Mas melhor eu não dizer mais nada, você logo saberá…
As portas do elevador se abriram. Os irmãos enfim estavam no hall do andar em que ficava o apartamento do mais novo dos dois. Com muitas malas ao seu redor lá estava também a tal vizinha, a cabeça loira voltada para baixo enquanto revirava a bolsa certamente à procura das chaves.
_ Precisa de ajuda? – ele perguntou em espanhol.
_ Não, Francesco, obrigada… – agradeceu, também em espanhol, sem mover a cabeça. – Ah, encontrei!
E com um largo sorriso ela se voltou para a direção do vizinho
_ Cristina, esse é meu irmão mais velho, Felipe…
Os olhos de nenhum deles parecia acreditar no que via. A saia pregueada xadrez de linho azul dera lugar a uma saia pregueada xadrez de lã marrom clara com listras perpendiculares largas em vermelho e estreitas e duplas em preto; a blusa salmão de seda fora trocada por uma azul clara de algodão; nos pés já não estavam os scarpins caramelos, mas mary-janes vermelhos, vermelhos como seus lábios, em vez do cor de boca rosado do dia anterior. Mas era ela, a mesma garota que despertara o máximo encantamento ao cruzar seu caminho de maneira tão repentina e inesperada com o mesmo olhar doce e tímido, mas ainda assim extremamente expressivo. E ele era bonito como ela não se dera conta no dia anterior. Era alto, tinha um belo porte, cabelo loiro escuro bem aparado, barba feita, estava bem vestido. Nada nele parecia com qualquer dos garotos que conhecera na primeira semana de aula, aquele era um homem de verdade. Estava longe demais para ela outra vez sentir o perfume, mas lembrava-se perfeitamente bem daqueles olhos intensamente azuis e do cativante e caloroso sorriso. Dessa vez, no entanto, havia um encantamento distinto no modo como cintilava aquele olhar e temia ela que também seus próprios olhos estivessem brilhando daquela maneira. A sensação era mágica e ela não sabia sequer como agir.
_ Então você é a vizinha do meu irmão… Como é o destino… – disse Felipe, com a voz quase embargada.
_ Como é o destino… – repetiu Cristina, aparvalhada. – Muito prazer, Cristina-Marie Brasseur! – apresentou-se, sem desviar o olhar por um instante sequer dos olhos dele.
_ Felipe Giuseppe Herrera… Encantado…
_ Igualmente…
Por favor, não esteja apaixonada por outro…, pensava ele. Por favor, que não haja ninguém esperando por ele em Nova York…, pensou ela. Não poderia haver maior encantamento que ser surpreendido por um amor á primeira vista em sua mais pura forma.
Continua em “Style“
Thaís Guaberto
* Músicas que serviram como trilha sonora desse texto:
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Economista & Escritora. Apaixonada por ficção, música, política e coisas fofas. Aqui vocês terão resenhas e, principalmente, textos ficcionais escritos por esta que vos “fala”.
PARA TUDOOOOOOOOOOOOO
Seu Blog está lindo demaisssssssssssssss de vdd …. que fofo … (preciso de umas aulas pra mudar o design do meu Blog já sei quem vou encher hahahaha)
Amei demais seu novo cantinho e estarei sempre por aqui pode ter certeza <3
Adorei a trilha sonora do seu texto …. spotfy eh vida 🙂
BJssss
Kah
Kah,
Muito obrigada!! *-* <3 usei um layout free aqui do wordpress mesmo, mas fiz meu próprio header 😉 Também sei fazer uns fundos dos mais simplezinhos… Spotify em blog certamente é vida haha
Beijos!