Resenha: “Cartas a Malcolm”

CS Lewis - Cartas a Malcolm

Embora atualmente Clive Staples (CS) Lewis  seja mais reconhecido mundialmente como autor da série de fantasia As Crônicas de Nárnia, o escritor britânico teve uma carreira bastante destacada também como ensaísta e apologista cristão. Muitas vezes, em seus trabalhos, Lewis combinou suas habilidades como romancista e apologista cristão para compor obras bastante singulares. Esse é o caso de “Cartas a Malcolm – sobretudo a respeito da oração” o primeiro livro que li do autor.

Publicado originalmente em 1963, “Cartas a Malcolm” traz 22 cartas de Lewis para Malcolm, um amigo fictício, com quem o autor discute diversos aspectos do Cristianismo, sobretudo aqueles associados à oração, como qual seria o papel dessa em nossas vidas e de que formas podemos pensar melhor no nosso relacionamento com Deus.  Mais que isso, Lewis aborda aspectos como a oração em comunidade, a liturgia do culto, a metafísica da oração e as diferenças entre a oração de adoração e a de penitência.

Esse seria um livro que dificilmente atrairia a minha atenção há cerca de um ano, quando, embora sempre tenha sido cristã, não havia tido interesse por estudar o Cristianismo de modo mais aprofundado. Há cerca de seis meses, no entanto, isso mudou. Interessada em entender como “esperar” em Deus apesar das minhas ansiedades e tendência ao ceticismo, comecei uma longa conversa (que segue até o momento) sobre o tema com uma amiga muito querida, católica muito devotada, tratando sobretudo da vivência da fé cristã, oração e “esperar” em Deus, aspectos nos quais eu a tenho como exemplo. Então comecei a devorar livros, artigos e vídeos sobre o tema e eis que, em janeiro desse ano, iniciei “Cartas a Malcolm” justamente por abordar um tema tão relevante para a vida cristã: a oração.

Uma das coisas que mais me cativou nessa obra de Lewis foi a familiaridade que senti ao ler suas conversas com o fictício Malcolm, as quais me lembravam dos enormes áudios trocados com minha amiga a esse respeito. “Eu gostaria que eles lembrassem que a ordem para Pedro foi ‘Cuide de minhas ovelhas’, não ‘Faça experimentos com meus ratos’, nem mesmo ‘Ensine novos truques a meus cães amestrados'”, lembra Lewis, logo na Carta I, demonstrando algum desgosto para com invencionices litúrgicas introduzidas por certos padres e pastores.

Mais que isso, Lewis conseguiu abordar de forma bastante leve e fluida diversos tópicos muito caros a cristãos de diversas denominações. Na carta V, por exemplo, Lewis “disseca” os elementos do Pai Nosso, expondo, inclusive, como a língua de tradução pode levar a significados ligeiramente distintos, visto que cada língua se organiza de forma particular a expressar como um certo povo pensa. Ao tratar da ansiedade humana, na carta VIII, Lewis declara:

Algumas pessoas se sentem culpada por suas ansiedades e as consideram um defeito da fé. Não concordo com isso de jeito nenhum. Elas são aflições, não pecados. Como todas as aflições, elas são, se assim podemos considerá-las, nossa participação na Paixão de Cristo”.

“Um dos propósitos para os quais Deus instituiu a oração pode ter sido testemunhar que o curso dos acontecimentos não é governado como um estado, mas criado como uma obra de arte com a qual cada ser traz sua contribuição e (em oração) uma contribuição consciente…”, sugere Lewis ao final da Carta X. Já na carta XII, identifico-me quando o autor coloca que “…nossas orações a favor dos outros fluem mais facilmente do que as que fazemos com respeito a nós mesmos”. Por outro lado, não tenho opinião formada sobre a explicação que ele propõe para isso, a qual implica que orar por si próprio seria mais difícil porque nós mesmos teremos de trabalhar para vencer nossos próprios pecados.

Ao abordar a idolatria, na carta XVI, Lewis entende que imagens de Jesus e santos são apenas um pouco de matéria que ajuda na concentração mental necessária para se orar e que efeito semelhante há ao se estar em uma igreja bem ornamentada. Esse último ponto, em especial, é verdadeiro para mim, uma vez que algumas das minhas mais relevantes experiências de oração deram-se em igrejas muito bem adornadas, de aparência realmente transcendental, como a Basílica de Imaculada Conceição em Jacksonville, Flórida, EUA, e a Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora, em Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Assim como Lewis, contudo, imagens de santos tendem a me distrair, visto que despertam tanto minha imaginação como minha curiosidade.

Já na carta XIX, a forma como Lewis aborda a Eucaristia é muito de como eu própria a “entendo”. Criada como protestante, a transubstanciação é um fenômeno racionalmente incompreensível para mim, o qual ganha sentido a partir das palavras do próprio Jesus conforme narrado na Bíblia, o que legitima a liturgia católica. “Essa luz não me foi dada […] Não consigo encontrar, nas formas de minha compreensão humana nenhuma conexão entre comer um homem […] e entrar em qualquer unidade ou comunidade ou koinonia espiritual com ele […] Meu esforço para fazê-lo produz um mero pensamento de criança pequena. […] Eu creio que há, na realidade, uma adequação, até mesmo uma necessidade, na escolha desses símbolos. Mas ela permanece oculta para mim”. Considere-se a transubstanciação católica ou a consubstanciação de algumas denominações protestantes, a comunhão é, inquestionavelmente, um daqueles aspectos sensíveis da fé cuja explicação é parte do mistério divino.

Uma revelação inesperada que encontramos na carta XX é que Lewis, embora protestante anglicano, acredita no purgatório, de modo que entende como relevante que se ore pelas almas dos falecidos. É interessante notar que o autor pontua que, ao menos em parte, o protestantismo teria abandonado essa visão muito devido ao estado de corrupção constatada na liderança católica à época dos primeiros reformadores. Aqui cabe mencionar ainda que Lewis, que fora ateu na juventude, teve como pontapé para sua conversão as obras de G. K. Chesterton, outro romancista e apologista cristão britânico de grande influência. E, talvez até pela influência de Chesterton, quem fora anglicano antes de ser católico, Lewis soa bastante católico ao longo de “Cartas a Malcolm”, embora fosse anglicano.

O ápice do livro, a meu ver, encontra-se na carta XXI, na qual Lewis disserta sobre as dificuldades que enfrentamos para orar. Distrações; vontade/necessidade de nos dedicarmos a tarefas mais mundanas; o alívio ao concluir uma oração e já não ter de fazê-la naquele dia. “É difícil nos concentrar em algo que não seja perceptível nem abstrato O que é concreto, mas imaterial, pode ser mantido em vista apenas com esforço doloroso”, reconhece o autor.

Por fim, é importante mencionar que “Cartas a Malcolm”, motiva diversas e sérias reflexões relacionadas a uma das principais práticas cristãs, a oração, incentivando-nos a nos empenharmos em uma vida de oração mais regrada e perseverante mesmo nos momentos em que isso se faz árduo. A leitura fluida ajuda muito a que compreendamos as mensagens, de modo que recomendo “Cartas a Malcolm” tanto para cristãos, independentemente da denominação, como para qualquer interessado em entender um pouco do pensamento de Lewis. E como podem notar pela imagem que acompanha o post, eu li a edição especial Thomas Nelson Brasil em capa dura e acabamento rebuscado, daquelas que enriquece qualquer coleção tanto pelo conteúdo providencial como pela beleza da edição, que pode ser encontrada tanto no site da própria editora como na Saraiva ou na Amazon.

10/10.

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2 thoughts on “Resenha: “Cartas a Malcolm”

  1. Isabela Delli Colli Zocolaro says:

    Eu amo suas resenhas! Acabei de ler esse livro, sou catolica e acho incrivel ver as visões de Lewis, ele foi uma pessoa muito especial, e sempre aprendo muito com ele.

    • Thais Gualberto says:

      Obrigada, Isabela! Hoje eu também sou católica e sigo apreciando o modo como Lewis fala sobre Deus e as coisas sagradas!
      Fique por aqui que em breve publicarei a resenha de Diálogo das Carmelitas!

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