De braços abertos

De braços abertos

Não se lembrava de ter vivido nada nem sequer parecido com a torrente de emoções que o aplacara ao longo daquelas mais de quinze horas que culminaram com uma das maiores alegrias de sua vida em seus braços pela primeira vez.

Nunca tivera dúvidas quanto à força da virtuosa mulher que elegera para amar por todo o sempre, contudo nada o preparara para o que pôde testemunhar. Como é possível suportar tanto? Como é possível entregar-se de maneira tão plena e desinteressada por um outro alguém? Seria essa uma das maiores provas da enormidade do amor que Deus nos infundiu?

Praticamente sem nenhum descanso ou pausa, permaneceu todas aquelas horas junto da esposa. A cada contração violenta, a cada onda de agonia, lá ele estava servindo-lhe como suporte, servindo-lhe como amparo. Surpreendia-lhe como ela ainda era capaz de sorrir e demonstrar alguma serenidade enquanto entre dores.

_ Essa é a única dor que termina com uma alegria incomensurável, meu amor… – ela insistia em repetir, embora em agonia. – E é apenas uma ínfima parcela… Das dores… De Jesus… Em sua… Cruz… E eu… Eu… Essas dores… Eu estou vivendo a graça… A graça de poder oferecê-las a Ele… A Ele que nos concede… O dom da vida…

Aquelas palavras, ditas de modo ofegante, entrecortado, mas tão cheias de uma verdade que ele só começara a contemplar após tê-la junto dele em sua vida. Como ele a admirava! Estupefaciava-lhe constatar ser possível admirá-la ainda mais ardente do que já a admirava. Ainda que por vezes ela gritasse de dor, não a viu reclamar uma vez sequer, muito pelo contrário. Ela se sentia em estado de graça por ter tido o privilégio de gerar uma vida e dar-lhe à luz, ainda que isso representasse um enorme sacrifício físico.

Quantos riscos, quanta dor uma mulher é capaz de se submeter em nome da graça da vida? Isso é amor…, maravilhava-o concluir. Como pode ainda haver quem entenda que a mulher está em posição inferior ao homem de acordo com o cristianismo se é a mulher que é encarregada da maior das honras, que é trazer ela própria uma nova vida ao mundo?

Não era a primeira vez que ele era pai, mas foi a primeira vez que ele participava de todo o processo que culminaria no nascimento. E que enorme diferença aquilo fazia! Agonia, encanto, medo, esperança; sentia-os todos ao mesmo tempo e em igual e visceral intensidade diante aquele evento. Medo de que sua esposa não suportasse o esforço físico necessário, agonia por ver a mulher amada com dores incontroláveis; encanto diante a força que ela demonstrava, esperança pelos dias que por eles esperava junto daquela vida pela qual seriam responsáveis.

Então um último e doloroso esforço foi empreendido. Enquanto ele ainda sentia em seu braço esquerdo o profundo e dolorido enterrar das unhas de sua esposa, um choro vivaz preencheu o cômodo e lágrimas de alegria inundaram-lhe os olhos e o rosto sem que ele sequer pudesse dar-se conta. Enquanto a menina era entregue nos braços da mãe pela primeira vez, ele apenas agradecia a Deus. Eu sou mesmo digno de tamanha felicidade, meu Deus? Obrigada, meu Deus, obrigada pelo tanto que nos têm abençoado! Obrigada por essa nova vida! Obrigada por essa experiência tão intensa! Obrigada pelo amor que me concedeu por essa mulher extraordinária…

Trocou um demorado olhar com sua esposa, visivelmente cansada, porém em estado de graça junto daquela menina que a fez mãe.

_ Obrigada, meu amor, por me ajudar a realizar o maior sonho da minha vida… – murmurou ela, com as palavras titubeantes, tomada por uma comoção que dificilmente conseguiria descrever em palavras. – Por que não segura a nossa menininha, a nossa Helena?

Beijou a testa da esposa como tantas outras vezes ao longo daquele dia e estendeu-lhe os braços para receber aquela parte de si próprio. Não se importava de ela ainda não ter sido limpa, apenas queria protegê-la, senti-la junto de seu peito. Respirou fundo. Estava em êxtase.  Haviam criado uma vida.

_ Então é esse o milagre maior, o amor que gera a vida… – murmurou, hipnotizado pelos olhos cheios de vida daquela pessoinha em seus braços. – Bem-vinda ao mundo, minha filha…

Esse texto traz o descrito em “Vida” sob a ótica de outro de seus protagonistas, o pai.

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