Resenha: “Diálogo das Carmelitas”

Diálogo das Carmelitas

O filme o “Diálogo das Carmelitas” é uma adaptação da peça “Diálogo das Carmelitas”, de George Bernanos, o qual, por sua vez, é uma versão do romance “Último ao Cadafalso”, de Gertrude von Le Fort. E todas essas versões retratam um evento real: o martírio de 16 irmãs carmelitas do Mosteiro de Compiègne, em Paris, no auge da barbárie na Revolução Francesa, o chamado “Terror”.

No filme, somos apresentados à jovem Blanche du Force (Ir. Blanche da Agonia de Cristo) quem é recebida como noviça no Mosteiro junto com a jovem Genoveva (Ir. Constance du Saint Denis). Enquanto esta última irradia energia, Blanche parece algo receosa diante as próprias decisões, porém assegura a seu pai que será feliz no Carmelo.

O lidar com a morte será um tema recorrente ao longo da obra. Ao adentrar sua cela para a primeira noite no claustro, Blanche assusta-se diante a caveira que repousa sobre o criado-mudo e admite-se fraca e com medo tanto da morte como da vida. Ao longo da história da Igreja, alguns santos foram retratados junto de caveiras em uma representação do “memento mori”, ou, em português, “lembre-se de que você vai morrer”. Portanto, assim se entende o propósito do crânio sobre o criado-mudo da então noviça. A Madre Superiora, que escuta o grito de Blanche ao ver a caveira, vai até a jovem e, com poucas palavras conduz tanto a personagem como os espectadores a uma interessante reflexão: “O que Deus quer provar em ti não é tua força, senão tua debilidade”. Guardem essa frase da Madre.

Pouco tempo depois, a morte confronta as irmãs novamente, quando a Madre Superiora falece após enfrentar uma doença não explicada pelo enredo. Ciente de que Blanche precisava de um suporte mais próximo para se manter firme e ir adiante, a Madre Superiora, antes de seu último suspiro, recomendou-a aos cuidados da Madre Maria da Encarnação. Nessa mesma época, a situação política da França agravava-se rapidamente e o convento não tardou a receber inoportunas visitas de emissários do governo formado. Tratava-se do período que ficou conhecido como “Terror”, durante o qual foram perseguidos todos aqueles que eram vistos como “inimigos” da Revolução. Cabe ressaltar aqui que o radicalismo vigente no período era legalizado, ou seja, estava devidamente previsto nas leis vigentes. Tal como na maioria das revoluções e regimes autoritários ao longo da história da humanidade, os religiosos foram apontados como inimigos na Revolução Francesa e perseguidos como radicais pelos verdadeiros radicais, que eram os revolucionários.

Eleita a Madre Therese de Saint Augustine como priora do convento, logo é confrontada pelo emissário do governo, quem não só adverte que os bens do convento passavam a pertencer ao estado como insinuava que a madre mantinha as demais religiosas como “prisioneiras” que precisavam ser libertas, uma vez que viviam na clausura. O regime simplesmente não podia aceitar que alguém, por livre e espontânea vontade, pudesse entregar sua vida à oração e à contemplação do divino. Para aqueles que pregavam “liberdade, igualdade e fraternidade”, a vida consagrada era uma afronta à liberdade ainda que ninguém as tenha obrigado a seguir aquele caminho. Mais que isso, para os revolucionários, as carmelitas eram consideradas perigosíssimas, uma vez que não estavam dispostas a colocar o estado acima de Deus. No contexto atual, isso é um convite para refletirmos a respeito de como muitos de nós entendem que a Igreja deve curvar-se aos ditames dos poderes civis.

Não tarda em chegar o momento em que o capelão do Carmelo precisa despojar-se de suas vestes clericais para continuar a cuidar das almas de seu rebanho e conseguir celebrar Missas às escondidas. Após a celebração da Paixão de Cristo na Sexta-Feira Santa, mais uma vez o emissário visita o convento. Diferentemente das ocasioes anteriores, aqui não houve apenas advertências, mas sim punições. A vida religiosa não seria mais tolerada. Para os revolucionários, uma Missa é uma mera “reunião clandestina”; o hábito, um trapo ridículo; a vocação religiosa, fanatismo. Estava ordenado o despejo das carmelitas para que o Carmelo abrigasse os soldados da revolução e, não bastasse isso, foi vetado a elas o direito de continuarem a viver em comunidade, limitando-se a um máximo de 3 delas vivendo em um mesmo lugar.

A situação drástica fez então com que tomassem uma decisão igualmente drástica: todas as carmelitas fizeram um voto de martírio: se ordenadas a apostatarem da fé pelo regime, elas se entregariam a morte sendo fiéis a Cristo. Quando chegou o momento da entrega pacífica, contudo, Blanche fugiu. Tal como revelara à Madre Superiora no início do filme, temia a morte e tão logo fez o voto junto de suas companheiras carmelitas, desertou, sendo encontrada sozinha na rua por representantes do governo. É bastante emblemático ver que, na cena em que as irmãs apresentam-se às autoridades civis trajadas como leigas, Blanche, a única a fugir do voto realizado, ainda levava em seu corpo parte do hábito carmelita quando aceitou dinheiro do comissário para que se dirigisse à casa de sua família.

Blanche logo teve de comparecer uma vez mais diante as autoridades, dessa vez para ser confrontada a seu velho pai, que estava preso por “traição” à revolução. É doloroso assistir Blanche em um sepulcral silêncio enquanto chamam a fé em Cristo de superstição, fanatismo, e alegam que a jovem fora “tirada do lar por sacerdotes”. Mais uma vez, evidencia-se o desprezo aqueles que se portam como emissários da liberdade e da tolerância pela religião e pela vocação religiosa. Madre Maria da Encarnação ainda tenta convencer Blanche a se unir às irmãs em nome do voto que fizeram a Deus, porém não tem sucesso e a moça foge uma vez mais de se mostrar disposta a cumprir seus votos.

Na prisão, pouco antes de ir a julgamento junto das demais carmelitas, a Madre Teresa de Santo Agostinho comenta sobre como não era possível perderem a liberdade visto que já haviam renunciado a ela ao decidirem pela vida na clausura. A atitude que terão mais adiante, contudo, demonstra o contrário: apesar da violência do estado, as carmelitas rumaram para o martírio com sua liberdade de consciência incólume. Condenadas à morte por meio da guilhotina com base em argumentos dignos dos que hoje se dizem tolerantes ao mesmo tempo que buscam o “cancelamento” de todos os dissonantes. Mais que isso, as carmelitas honram a Deus ao não se dobrarem às leis iníquas do Estado que as obrigariam a apostatar da fé.

Ainda que ao nosso olhar humano e falho as religiosas tenham sido derrotadas pelo Estado, elas eram, na verdade, vitoriosas, pois tiveram o espírito forte o bastante para perseverarem até o último minuto e abraçarem a cruz que lhes valeu a coroa do martírio. Lá foram elas, sorridentes, de cabeça erguida e consciência limpa e livre, entoando hinos como o Veni Creator e rezando enquanto se entregavam à condenação humana em troca da salvação eterna. O amor das carmelitas venceu a violência de seus algozes.

Lembram-se de que falei para guardarem a frase que a Madre Superiora disse à Blanche no início do filme? É no desfecho que seu significado pode ser plenamente compreendido. Blanche, que tanto hesitava em ser fiel ao voto que fizera, ao se deparar com a execução da sentença contra suas ex-companheiras, entrega-se aos algozes no lugar da Madre Maria da Encarnação. Deus provou-lhe a debilidade no momento derradeiro e ela se entregou por completo a Ele, cumprindo fielmente seu voto.

O filme “Diálogo das Carmelitas” está disponível no Brasil na Lumine TV. Os livros “Última ao Cadafalso“, de Gertrud von le Fort, e “Diálogo das Carmelitas“, de George Bernanos, podem ser encontrados na Amazon.

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