Resenha: “O Despertar da Srta. Prim”

O Despertar da Senhorita Prim

Santo Ireneu de Arnois. Um povoado deveras distinto nesses tempos modernos, com habitantes pouco convencionais e um especial apreço por muito do que a maioria hoje consideraria antiquado. É para lá que se dirige Prudencia Prim, uma jovem mulher deveras qualificada e bastante independente, após deparar-se com um anúncio um tanto inusitado. “Procura-se espírito feminino em nada subjugado pelo mundo. Capaz de trabalhar como bibliotecária para um cavalheiro e seus livros. Facilidade para lidar com cães e crianças. Melhor sem experiência de trabalho”.  É baseada nessa premissa um tanto peculiar que se desenrola “O Despertar da Senhorita Prim“, romance de estreia da jornalista espanhola Natalia Sanmartin.

Mais que a atmosfera diferenciada da cidadezinha, ao chegar ao seu local de trabalho, Prudência surpreende-se por encontrar crianças declamando e demonstrando compreensão em relação a grandes clássicos da literatura mundial, como Ilíada e Odisseia. E como eram inteligentes aquelas crianças! Principalmente as quatro sob tutela do excêntrico patrão da Srta Prim, o tão peculiar “Homem da Poltrona”, do qual em nenhum momento ficamos sabendo o nome, tio dos dois meninos e duas meninas que tão rapidamente afeiçoaram-se à bibliotecária. Mas Prim, com sua rica formação acadêmica, era tudo o que o Homem da Poltrona não desejava. Ainda assim, ele a contratou para organizar-lhe a imensa e riquíssima biblioteca.

Horácio, Hortênsia, Hermínia, a Sra. Mott, as crianças, o monge, a velha Lulu, a mãe do Homem da Poltrona. Todos personagens muito vivos no enredo, com suas peculiaridades bem estabelecidas e relevantes a seu modo para o desenrolar da narrativa. Entretanto também surgiram como vivas personagens os livros e autores citados e discutidos ao longo da obra, tão essenciais para se compreender os valores sob os quais Santo Ireneu de Arnois fora erguida e seus habitantes guiavam-se. A famosa citação de G. K. Chesterton sobre a mulher no mercado de trabalho, presente em “O que há de errado com o mundo“, destacado em uma plaquinha sobre a lareira da sede da Liga Feminista de Santo Ireneu. Ou ainda a épica discussão entre Prim e o Homem da Poltrona a respeito de “Orgulho e Preconceito“, de Jane Austen e como, de certa maneira, identificavam a eles próprios com os protagonistas Fitzwilliam Darcy e Elizabeth Bennett, e o momento em que Prim constatou que faltavam às meninas leituras próprias para a formação do imaginário feminino, como “Mulherzinhas“, de Louisa May Alcott. Afinal, “Digo que de certo modo somos frutos de nossas leituras”, de acordo com Prim, fato com que concordo integralmente.

Também soavam como personagens as várias discussões apresentadas ao longo da obra, como o horror pelo feminismo normalmente assim chamado, o qual deveria ser substituído por um feminismo feminino como o pregado nas obras de Edith Stein ou o próprio estilo de vida local fortemente baseado no distributismo chestertoniano. A críticas às escolas e à educação modernas, que seriam “fábricas de indisciplina, criação de monstros ignorantes e mal-educados”, destacam-se ao longo da obra. Há ainda várias passagens que rementem (e criticam) ao sentimentalismo tóxico predominante nas sociedades modernas, o que é esmiuçado com maestria em “Podres de Mimados“, do psiquiatra britânico Theodore Dalrymple. Ou mesmo a ideia algumas vezes mencionadas no decorrer da obra de que para casar é preciso não de dois, mas de três, em uma oblíqua alusão a “Três para Casar“, do Venerável Fulton Sheen.

Um dos aspectos mais cativantes da obra, sem nenhuma dúvida, reside nos deliciosos embates argumentativos entre a Srta Prim e seu patrão, o Homem da Poltrona. Sempre muito obstinada em suas opiniões, Prim inquietava-se ao ser confrontada por uma inteligência tão sagaz quanto a sua própria, tão capaz de desestabilizá-la ao lhe confrontar as contradições que carregava em si mesma. E é por isso que o livro fala em “Despertar” em seu título: cada discussão com cada morador de Santo Ireneu, sobretudo com o Homem da Poltrona” parecia levar embora, pouco a pouco e dolorosamente, o arraigado ceticismo da moça, levando-a ao vislumbre da Verdade e de uma necessidade de conversão que até então ela se recusava a ver. Atrelado a isso, a mudança no entendimento de Prim sobre o casamento e constatação de que para esse ser exitoso é necessária uma desigualdade que leve à admiração no outro de virtudes que temos dificuldade em cultivar simultaneamente a um tanto de princípios inegociáveis em comum. “Só é possível admirar o que não se tem. […] …admira no outro o que não possui e que vê brilhar no outro em todo o seu esplendor […] É a diferença, não a igualdade o que alimenta a admiração entre duas pessoas”

É importante mencionar que o Homem da Poltrona é apresentado como um homem de grandes virtudes, porém, ainda assim, imperfeito como todo e qualquer ser humano, sobretudo quanto a suas veementes manifestações de orgulho. Era masculino, cortês, profundamente inteligente, sinceramente dedicado aos sobrinhos cujo cuidado coube a ele após a morte da irmã e verdadeiro católico. E é ao se deparar com ele que Prim descobre também a Ele, Deus, e a Verdade, como antes mencionei. E é nesse sentido que ela “desperta”. Confrontando seus vícios, suas crenças, abrindo-se para mais que apenas escutar, entender o outro.

Por outro lado, a breve fuga de Prim ao final do romance é algo que me incomoda um pouco, pois, particularmente, preferiria que encarasse sua jornada de crescimento e conversão sem a necessidade de se afastar de tudo e de todos. Apesar disso, o modo como mesmo em fuga ela segue buscando o Bom e o Belo, sobretudo por meio das igrejas italianas, é admirável e, sem nenhuma dúvida, um caminho de quem estava disposta a conhecer toda a herança cultural, histórica e metafísica que foi legada ao mundo pela Igreja Católica desde o seu princípio.

Por fim, posso dizer que a obra de estreia de Sanmartin cativou-me profundamente com sua riqueza na referência direta ou indireta de grandes autores, na construção das personagens, mas, principalmente, na jornada de Prudência, com quem tanto me identifico em tantos aspectos. Do ímpeto por discutir e buscar o que é belo à formação intelectual ostensiva e despertar para a conversão. 10/10 para esse romance maravilhoso que li nessa quarentena odiosa.

Tanto o “Despertar da Senhorita Prim” como todos os livros citados nessa resenha estão devidamente linkados a sites que são vendidos, em especial à Livraria Mater Dei.

4

3 thoughts on “Resenha: “O Despertar da Srta. Prim”

  1. Inez says:

    Obrigada pela resenha. Você acha adequado este livro para uma menina de 11 anos? Ela gosta de ler, mas não sei se já pegou algo assim. Ela é cristã, mas não católica, você acha que seria “estranho” este presente?

    • Thais Gualberto says:

      Oi, Inez!
      Obrigada você pela visita!

      Entendo que a leitura é positiva para qualquer mocinha cristã, independentemente da denominação, pois, ainda que alguns personagens sejam explicitamente católicos, o livro é muito mais voltado para a vivência dos valores cristãos. Entretanto, a depender da maturidade da menina, talvez seja melhor esperar que ela tem 13 anos. Não porque haja qualquer trecho inapropriado (não há!), mas porque há alguns momentos mais metafóricos e filosóficos na trama, os quais creio que ela compreenderá melhor mais adiante.

      Para a faixa etária dela, uma ótima pedida é Mulherzinhas, de Louise May Alcott, especialmente a tradução da editora Penguin à venda na Amazon https://www.amazon.com.br/Mulherzinhas-Louisa-May-Alcott/dp/8582850980/ref=sr_1_3?keywords=mulherzinhas&qid=1644186490&sprefix=mulh%2Caps%2C201&sr=8-3

      Espero ter ajudado! Uma ótima semana!

Comente!

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.