Em algum lugar

Algum Lugar

Havia palavras que o coração não era capaz de dizer, mas Alice teve de dizê-las. Como deixar partir o grande amor de sua vida? Como renunciar aos próprios sonhos e objetivos? A promessa que fizera à irmã custara-lhe demasiado caro e não havia volta. Ou você suspende em definitivo o noivado ou nunca mais verá seu sobrinho… As palavras de Amalia feriram-na como punhais, fazendo-a se perguntar como podia sua irmã mais nova ser capaz de tamanha perversidade. Inveja? Rancor? Ódio?

Só Deus sabia o quanto Alice chorara naquele dia e mais ainda ao anunciar o impronunciável a Joseph. Não o convencera, era óbvio. Não há meios de se dizer adeus para alguém com quem imaginava compartilhar todos os dias por vir em sua vida. Ele protestou, mas era inútil. Ela precisava terminar. Eles precisavam se afastar. Era o único meio de honrar a memória da falecida irmã, de poder pessoalmente tomar conta do sobrinho recém-nascido. Como pode Amalia ser tão miserável com todos?

Os dias seguiram como um borrão. Das aulas de francês e italiano para outras jovens abastadas como ela para casa; de casa para as aulas. Todos os dias um esforço homérico por se manter firme e indecifrável diante o mundo, todos os dias pedindo a Deus que a ajudasse a esquecer Joseph. Isso, contudo, ela sabia ser impossível. O único amor de sua vida, seu futuro marido. E, em um piscar de olhos, todos os anseios ruíram. Por uma decisão dela própria, era fato, mas uma decisão tomada sob circusntâncias muito particulares, ameaças. Joseph… Espero que um dia possa me perdoar por isso…, pensava sempre que contemplava a foto dele que mantinha em seu diário. Espero que não me odeie por isso…

A resignação veio com as semanas, sempre precipitada por sorrisos e gracinhas de seu sobrinho bebê. Você precisa de mim como eu de você… O filho que nunca terei…, pensava cada vez que o tinha em seus braços, muitas vezes ao dia. Joseph, contudo, seguia povoando seus pensamentos. Como gostaria de ser livre para ser esposa dele, para conceber um filho dele. Dias. Meses. Semanas. Nenhuma ligação; nenhuma carta. Dizer adeus dói quando a história não acabou e o livro foi fechado. E como doía para Alice.
Mais um dia de trabalho, mais um dia de anestesiante rotina, não fosse a convocação para acompanhar as alunas do último ano em sua viagem de formatura. Escolhida por não ter filhos pequenos que a necessitassem em casa, Alice não acreditava em coincidências ou no mero acaso, mas apenas nos desígnios de Deus. Seria essa uma oportunidade, Deus? Eu estaria pecando, mas seria esse pecado uma mácula tão grande na minha alma considerando o quanto tenho me sacrificado? Deus, dê-me direção… Apanhou papel e envelope, escreveu algumas poucas palavras e assim que terminaram as aulas daquele dia, dirigiu-se ao correio. Seja o que o Senhor quiser…

Cabelo solto, batom rosado, unhas feitas. Vestido branco com estampa floral em tons de azul, sapatos mary-jane em azul marinho. Vinte horas, trinta minutos. Penúltimo dia da viagem. Será vontade de Deus que eu tenha vindo aqui em vão?, perguntava-se Alice, em sua silenciosa e solitária agonia. Não era para ser… Nunca foi…

_ Oito e meia da noite. Procure o sol entre os hotéis. Com amor, Alice.

Em um sobressalto, Alice virou-se para trás, absolutamente incrédula.

_ Você veio… Joseph…

_ Eu jamais poderia te dizer não…

Abraçaram-se com força; lágrimas inundavam o rosto de Alice. Alguns minutos, um profundo silêncio.

_ Faça-me sua, Joseph… Por favor! – clamou Alice, sob forte emoção, ao ouvido de Joseph.

_ Não posso… Eu adoraria, mas… Não posso maculá-la dessa forma…

_ Não me importo… Não me importo em pecar se for para ao menos uma vez na vida ter o deleite de lhe pertencer de corpo e alma…

_ Alice…

_ De que me serve a castidade se não posso casar com quem amo ou com qualquer outro homem? Eu te amo tanto… Essa é minha única oportunidade… Por favor…

Em silêncio, permaneceram abraçados por mais alguns minutos. Sim, Joseph a desejava como mulher, porém não considerava correto ir adiante. Sim, Joseph não considerava correto ir adiante, porém compreendia a profunda dor que os olhos azuis límpidos de Alice transmitiam e o quão tolhida ela fora e ainda seria por Amalia.

_ Vamos… – murmurou Joseph, fitando o fundo dos olhos de Alice e secando-lhe o rosto com o lenço que carregava consigo.

De mãos dadas como um jovem e alegre casal de recém-casados, seguiram para o hotel em que ele estava hospedado. Uma única noite. Uma única e memorável noite que Alice levaria para sempre consigo. Atenção, carinho, amor, cuidado, prazer. Aquelas palavras seriam as que Alice sempre associaria à noite em que enfim e pela última vez pertenceu ao seu grande amor. Um sentimento deveras agridoce, é fato. Pleno, porém triste pelo inevitável e definitivo afastamento que se seguiria. Ainda assim, sentia-se realizada. Eis o segredo que sempre os uniria e que talvez levassem consigo para o túmulo.

Em algum lugar jazia a menina Alice, que dava lugar, física e emocionalmente, à mulher Alice.

Nota da autora: Recomenda-se a leitura da crônica Reflexo, que traz Alice muitos anos mais tarde que a presente crônica e foi publicada neste site pouco mais de um ano atrás.

0

Comente!

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.