O maior presente

O Maior Presente

A cada conta, uma lembrança. As brincadeiras da infância, os sonhos adolescentes, a vida adulta. Dos quarenta anos de vida, somavam trinta e três de amizade. Eram como irmãs, sempre presentes nos bons e maus momentos uma da outra. Uma amizade inabalável, a partir da qual tanto aprendera sobre quando calar e quando intervir; quando apoiar e quando advertir. À morte do então noivo de Ilana, lá estivera Paula, firme como uma rocha, sem se permitir desistir da amiga só porque aquela se tornara reclusa, sem desistir de ajudar Ilana a ver o mundo em cores outra vez, apesar dos muitos anos que precisou para isso. Também Ilana, tanto com críticas como com caridade, fora um apoio indispensável a Paula quando esta se casou às pressas após engravidar do então namorado e, poucos anos depois, quando se divorciou. Mais uma vez, ali estava Paula, apoiando sua melhor amiga em mais um momento tão vívido de suas histórias: o enorme presente que seria o nascimento da primogênita de Ilana.

Nunca imaginara a situação que ali vivenciava. Ela própria já deveria ter retornado à cidade. Sua amiga deveria rumar para a cidade na semana seguinte e lá aguardar até que fosse a hora de ir para a maternidade. Mas não foi assim que Deus quis e Helena nasceria na mesma fazenda que seu avô materno nascera mais de setenta anos antes, no dia em que seus avós maternos completavam cinquenta anos de casados. Que enorme benção estava testemunhando! E tudo aquilo acontecendo tão de repente, tão inesperadamente. Estaria ali, até o fim, por quanto tempo fosse preciso.

Em que outro momento lembrava-se de ter permanecido de joelhos no chão em oração? Paula não era especialmente religiosa. No seu próprio entendimento, era temente a Deus sim, mas jamais religiosa. Mesmo a proximidade tão grande dos Lizárraga e a amizade de toda uma vida com Ilana não foram suficientes para que Paula ansiasse pela vivência da religião. Naquele dia de maio foi diferente, contudo. Sentia uma pulsão por se unir à oração dos demais presentes. Joelhos ao chão, rosário nas mãos. Enquanto em um dos quartos da casa, sua melhor amiga, sua amiga-irmã e comadre enfrentava as dores do parto, Paula uniu-se em oração àqueles que, por convivência, já tinha como família.

Rezariam o rosário em turnos até que se consumasse o parto, sempre meditando a maternidade ao longo dos Mistérios Gozosos. E lá estava Paula, firme em oração, mal pausando para tomar água, concentrada como jamais fora capaz ao tentar orar. Seria aquele o evento a despertar sua fé de maneira perene? Não sabia, no entanto intuia que sim. A sensação lembrava-lhe a gigantesca comoção que sentira, quase um ano antes, ao caminhar rumo ao altar como dama de honra no casamento de sua amiga. Chorava silenciosamente, porém rogozijada. Quando que, há pouco mais de um ano, eu poderia imaginar a mim ou a Ilana vivendo o que agora estamos vivendo? Valeu à pena, Senhor. Valeu à pena cultivar nossa amizade, em cada momento de dor e de alegria… Que enorme presente estar testemunhando tantas e sucessivas graças na vida de uma das pessoas a quem mais quero bem e mais admiro… Que enorme alegria há no meu coração por você minha amiga! Que enorme alegria e amor por essa vida que já não tardará em estar conosco!

_ Nasceu! – gritou Matilda, parecendo ter corrido desde o quarto em que acontecera o parto até a capela e interrompendo a oração com a melhor notícia possível. – Nasceu e é linda como a mãe, a menina Helena!

Um arrepio de alegria percorreu o corpo de Paula e as lágrimas que antes pareciam presas em um emocionado choro interno, verteram-lhe dos olhos. Minha amiga… Minha amiga é mãe… Ilana, você conseguiu!

_ Mais uma Lizárraga nesse mundo! – exclamou Emiliano, com evidente orgulho da filha. – Glória, Senhor, por mais essa vida, por mais esse milagre!

Ajoelharam-se todos diante o altar e Emiliano, como patriarca, entoou uma breve oração.

_ Já posso ir conhecer a minha neta? – perguntou um ansioso Emiliano, pondo-se de pé diante a mais antiga empregada da família.

_ A menina Ilana pediu justamente que o senhor suba… E que a menina Paula o acompanhe…

_ Eu? Pode ir sozinho, tio… – murmurou Paula, contente, porém encabulada. – A família primeiro… Octavio pode acompanhá-lo em meu lugar…

Emiliano repousou pesadamente a mão direita sobre o ombro esquerdo de Paula.

_ Paulinha… E você não é família? – perguntou, com uma marota e gentil expressão.

Um tanto tímida e sem ação, o que não lhe era típico, Paula acompanhou o pai de Ilana rumo ao quarto que desde sempre pertencera à amiga. Não quis entrar com ele. Aguardou pensativa próxima da porta, no corredor, enquanto ouvia as alegres exclamações que ecoavam no quarto. Meu Deus… Ilana é mãe…

_ Preciso de um bom café, meu amor! – comentava Alma com Emiliano, saindo do quarto pela primeira vez desde que nascera a neta. – Paula… O que está esperando para conhecer sua afilhada, Paulinha?

_ Bem, acho que agora é minha vez… – murmurou, algo tímida.

Passou pelos pais da amiga, tendo consigo a vívida lembrança do dia que Ilana caminhara para dentro do quarto que ela própria ocupara quando deu à luz a sua única filha, quase oito anos antes. Será que sentirei a mesma afeição que ela pareceu sentir ao conhecer a minha Sofia? Lembrou-se também de como a amiga parecia melhor talhada que ela à maternidade, muito mais hábil em segurar a menina que ela própria naquele primeiro dia. Girou a maçaneta, abriu a porta. A cena com que se deparou ficaria para sempre marcada em sua memória. Ilana recostada à cabeceira da cama, uma fita rosa clara de cetim a prender seu cabelo em um frouxo rabo de cavalo, vestindo uma camisola de seda no mesmo tom da fita e um sereno olhar voltado para baixo, contemplando o pequeno embrulho que tinha no colo. Luciano sentado ao lado de sua esposa, também a contemplar a filha recém-nascida com o olhar maravilhado. Os olhos de Ilana então se voltaram para a entrada do quarto, deparando-se com os de uma Paula, quase paralisada, completamente enternecida pelo que via.

_ Sua madrinha veio te conhecer, filha… – disse baixinho, sorrindo luminosamente para a amiga.

Paula sentia-se sem saber como agir. Apenas andou, algo como em modo automático, até Ilana.

_ Estou tão orgulhosa de você, Ilana… – disse, desejando que pudesse ser mais expressiva em suas palavras, porém sem conseguir raciocinar claramente.

_ E eu estou tão feliz de que esteja aqui para conhecê-la tão pouco tempo depois de nascida! – exclamou Ilana, exultante. – Não é linda, minha Helena? – indagou, enquanto cuidadosamente passava a filha aos braços da amiga.

A recém-nascida vestia uma roupinha rosa claro e estava envolta em uma manta branca de estampa floral em tons de rosa. Dormia tranquilamente quando Paula carinhosamente a acolheu em seu colo. Será que herdou os olhos do pai ou da mãe?, perguntava-se, tocando sutilmente o cabelo claro que recobria a cabeça da menina e notando, sem muito esforço, a predominância das feições da família materna.

_ Você é tão linda e adorável, Helena… Te amei desde aquele dia de setembro em que sua mãe anunciou-me a sua vida… Então fui presenteada quando, logo no comecinho do ano pude senti-la mover-se no ventre de sua mãe… Passou tão rápido… – murmurava, enquanto embalava a pequena em seus braços. – Mas estou tão feliz por finalmente conhecê-la… Você me faz querer tanto ser uma pessoa melhor para ser para você o bom exemplo que sua mãe é para minha Sofia… Que honra é tê-la aqui nos meus braços, Helena… Você já faz sua madrinha aqui muito feliz, emocionada e orgulhosa. Pois você é ainda mais preciosa e apaixonante do que jamais poderia imaginar… Deus foi maravilhoso com seus pais…

Um bocejo e uma espreguiçada e Paula riu, devolvendo a menina para a mãe.

_ Como se sente? – questionou Paula à amiga, ansiosa pelos detalhes que só a amiga conseguiria contar a ela.

_ Bem, vou dar uma volta para que as comadres fiquem mais à vontade – avisou Luciano, inclinando-se para um rápido beijo na esposa e outro na testa da filha. – Voltarei com comida.

_ Por favor! – suplicou Ilana, com o ímpeto que lhe era característico.

As amigas riram e uma Paula extremamente atenta pôs-se a ouvir o relato, muitas vezes ainda vago e confuso, da experiência de Ilana. Apesar da forte emoção que as envolvia, tudo que conversavam soava muito natural, como esperado em uma amizade que sobrevivia e se fortalecia havia mais de três décadas. Testemunhar a multiplicação da vida e do amor por meio daquela amizade tão genuína era o melhor e maior presente que Paula poderia receber de Ilana.

“Amizade não é uma recompensa das nossas escolhas e bom gosto em encontrar um ao outro. Amigos são instrumentos pelos quais Deus revela para cada um de nós a beleza de todos os outros” – C S Lewis

Três outras óticas do evento foram publicadas neste site: “Vida”, “De braços abertos” e “Ciclo da Vida“. Está completa a micro série “O Milagre da Vida”.

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